Discurso no Comício do PCP no Campo Pequeno
28 de Junho de 1974
Camaradas:
O povo português goza hoje de liberdades democráticas essenciais. Editam-se os jornais sem qualquer censura prévia. Reuniões e manifestações têm lugar livremente. Desenvolvem a sua actividade os partidos políticos. Se mais não houvesse, este comício, em que estamos participando, seria por si só uma afirmação da mudança radical da situação política e da existência em Portugal de liberdades democráticas fundamentais, uma afirmação da aquisição pelo povo português daquilo por que ansiou e lutou ao longo de dezenas de anos de ditadura fascista.
Creio ser justo felicitar a Direcção da Organização Regional de Lisboa, os membros do Partido e simpatizantes que, com a sua iniciativa, o seu entusiasmo, e o seu espírito militante, tornaram possível (apesar da chuva) o brilhante sucesso deste comício. Para todos vós, camaradas e amigos que nele participais, as mais calorosas saudações. Nós não tememos a chuva nem as tempestades, nem as da natureza, nem as políticas, passámos já muitas e a experiência e provas passadas dão-nos confiança no futuro.
Consideramos e estamos certos de que o nosso povo considera também as liberdades democráticas como uma aquisição de capital importância, que é necessário defender e consolidar.
As liberdades, sendo uma situação de facto que resultou do 25 de Abril e da ulterior acção das Forças Armadas e das forças democráticas, têm necessariamente de ser reconhecidas pela lei. Esse reconhecimento será em si uma grande vitória das forças democráticas, do nosso povo, que durante quase meio século de fascismo lutou pela instauração das liberdades.
Entretanto, camaradas, devemos ser claros. Se não existe, na actual situação política, um perigo de supressão das liberdades, existem tendências no sentido de transformar a institucionalização de liberdades e direitos num colete de forças para o seu exercício. Isto é: existe um certo risco de ver afectadas gravemente as liberdades e direitos, precisamente no momento em que são legalmente instituídos. Pela nossa parte, tudo faremos para que a institucionalização ou regulamentação das liberdades e direitos se não voltem contra as próprias liberdades.
A institucionalização das liberdades e direitos deve significar o seu reconhecimento real e a real garantia do seu exercício. Não há qualquer outra solução que possa considerar-se democrática.
Camaradas:
Com a liberdade de falar, de escrever, de reclamar, veio à luz do dia todo o atraso da economia portuguesa, que nós há muito apontávamos. Vieram também à luz do dia todas as misérias, as dificuldades, as faltas, as injustiças, os atrasos de melhoria das condições de vida das massas trabalhadoras. É completamente legítimo que os trabalhadores, com a libertação de Portugal do fascismo, apresentassem as suas reivindicações mais prementes e exigissem que fossem satisfeitas. Deve dizer-se que muitas reivindicações imediatas foram satisfeitas e que em dois meses do regime democrático provisório em que vivemos, os trabalhadores conseguiram, na sua luta reivindicativa, mais êxitos do que teriam conseguido em dez ou mesmo vinte anos do antigo regime.
A luta dos trabalhadores tem de continuar e continuará. Entretanto, o nosso Partido chama a atenção para três problemas ligados à luta reivindicativa.
O primeiro é o nível das reivindicações. É imprescindível formular as reivindicações, tendo em conta que estamos numa sociedade capitalista. Certas reivindicações irrealistas sopradas por demagogos, por fascistas e pelo próprio patronato reaccionário (que não pretendem naturalmente defender os interesses dos trabalhadores, mas lançá-los num movimento político contra o governo) nada ajudam à solução dos problemas.
O segundo problema ligado à luta reivindicativa é o da situação económica do País.
De momento, gostaria apenas de sublinhar que uma situação económica grave não só atingiria as condições de vida dos trabalhadores, como criaria um terreno favorável às conspirações contra-revolucionárias. Por isso, são as forças reaccionárias que procuram criar uma crise económica e não os trabalhadores, que, pela sua elevada consciência política, têm mostrado ser capazes de contribuir com sacrifício próprio para impedir o agravamento da situação económica e assegurar a continuação do processo de democratização da vida portuguesa.
O terceiro problema relacionado com a luta reivindicativa respeita às formas de luta. Os trabalhadores não renunciam nem renunciarão a armas de luta provadas pela experiência e, entre elas, a greve, que constitui um direito inalienável dos trabalhadores. Se o fascismo, considerando a greve um crime, não conseguiu que os trabalhadores renunciassem ao direito de declará-la, seria um tanto absurdo que os trabalhadores perdessem esse direito no preciso momento em que é reconhecido. Ao mesmo tempo que defendemos o real direito a greve, temos chamado e continuamos chamando a atenção dos trabalhadores para as incidências económicas, sociais e políticas das greves na complexa situação política existente, sobretudo quando afectam sectores vitais para a economia nacional e para a vida das populações.
O Partido insiste em que, na situação actual, a multiplicação de greves não serviria os interesses dos trabalhadores e que, por isso, salvo casos muito especiais, só depois de esgotadas outras formas de luta, só em último caso, se deve recorrer à greve. Entretanto, com outras formas, a luta dos trabalhadores tem de continuar, além do mais porque à compreensão dos trabalhadores para contribuírem para assegurar a estabilidade económica aceitando adiar certas reivindicações, esperar mais tempo, não recorrer muitas vezes à greve, não se tem verificado correspondente conduta por parte do grande patronato. Os trabalhadores não estão naturalmente dispostos a pagar todo o preço das dificuldades da economia nacional, na criação das quais não têm qualquer responsabilidade.
A questão colonial tomou-se mais complexa, na medida em que não se pôs ainda fim à guerra e não existe uma clara perspectiva da solução do problema. Se compararmos a situação com a existente ainda há pouco mais de dois meses, no tempo da ditadura fascista, vemos naturalmente uma diferença notável. Hoje todas as forças e sectores que participam no processo de democratização estão de acordo em três ideias fundamentais: que o problema só pode ter, não uma solução militar, mas uma solução política, que é necessário pôr fim à guerra e que é necessário realizar negociações com os movimentos de libertação nacional da Guiné-Bissau, Moçambique e Angola. Lembramos que ainda nos últimos tempos do fascismo, por afirmarem não poder haver uma vitória militar e defenderem a necessidade de uma solução política, foram demitidos os generais Spínola e Costa Gomes e muitos outros oficiais foram perseguidos por defenderem a abertura de negociações. Hoje a situação é completamente diversa. O que ontem era perseguido é hoje, no que respeita a essas ideias gerais, a política portuguesa oficial.
Entretanto, é sabido que, na larga coligação de forças que governa o país, há ideias diferentes acerca da solução do problema e das formas e métodos na acção política imediata.
No entender do Partido Comunista, as dificuldades podem ser vencidas, pode pôr-se fim à guerra e é viável uma solução, desde que, na política que se segue, nas respostas dadas aos problemas diários, nas soluções de ordem política em problemas parcelares, nas perspectivas apresentadas, apareça claramente o reconhecimento do direito dos povos à independência. A partir daí, as negociações podem continuar a progredir com interesse de todos.
Em África a situação degrada-se rapidamente, com possíveis reflexos na situação em Portugal. Há momentos na história em que se impõem grandes decisões que decidem a sorte dos povos. No que respeita à questão colonial, é um tal momento que hoje vivemos, É urgente retomar as negociações e caminhar, com decisão e em acordo com os movimentos de libertação nacional, para soluções justas de tão magno problema.
Temos falado de acontecimentos relativos à política interna. Gostaria também de referir alguns relativos à política externa.
É motivo de imensa alegria para os trabalhadores e para todos os democratas portugueses que, pela primeira vez na história, cinquenta e sete anos passados sobre a Revolução de Outubro, se tenham finalmente estabelecido relações diplomáticas entre Portugal e a União Soviética, o grande pais do socialismo. As relações com a União Soviética e outros países socialistas abrem amplas possibilidades de desenvolvimento económico, técnico, científico e cultural. Finalmente, também o povo português poderá conhecer, sem as criminosas barreiras que existiam no tempo do fascismo, o povo soviético e outros povos amigos que, nos anos cruéis da ditadura fascista, sempre apoiaram activamente a luta do povo português e que, podemos estar certos, hoje continuam a apoiá-la para que triunfe definitivamente a democracia no nosso país.
Para o povo soviético, para os povos dos países socialistas, vão neste momento (e estou certo de interpretar os sentimentos de todos os participantes neste comício) as nossas saudações calorosas e fraternais.
Nos negros anos de fascismo, os portugueses que, correndo por vezes sérios riscos, visitaram a União Soviética e outros países socialistas, foram sempre recebidos com viva e sentida amizade e solidariedade. Desejamos profundamente que em breve visitem o nosso país numerosos cidadãos soviéticos e de outros países socialistas. E estamos certos de que serão rodeados pela expressão da sincera e indestrutível amizade dos trabalhadores e do povo de Portugal.
Este comício toma muito justamente como lema a unidade. A unidade é, de facto, uma questão candente da hora actual e uma condição para a vitória. Na situação actual, na complexa arrumação das forças de classe, o problema da unidade toma aspectos muito variados e envolve ele próprio numerosos problemas.
Os dois aspectos capitais são, por um lado, a unidade das forças democráticas e do movimento popular de massas e, por outro lado, a aliança do movimento popular com o Movimento das Forças Armadas. A realização desta unidade e desta aliança não se podem limitar a declarações de ordem geral. A sua concretização na acção prática é essencial e decisiva. Consolidar as liberdades, pôr fim à guerra, conduzir o país à instauração de um regime democrático, são as grandes e decisivas tarefas da hora actual.
Defendemos a mais ampla unidade de todas as forças sociais e políticas, de todos os portugueses e portuguesas — sem excepção — que estejam sinceramente interessados em participar na realização destes objectivos. O nosso Partido tem força. Mas não é animado por um espírito sectário. A força do Partido está ao serviço da causa da unidade na luta pela democracia e pela paz.
É sem dúvida com imensa alegria que os comunistas verificam a confiança que têm no Partido as massas trabalhadoras, a juventude, amplos sectores da população. O nosso Partido é hoje para muitas e muitas centenas de milhar de Portugueses, o Partido da esperança; o Partido cuja participação activa é indispensável para a democratização da vida política portuguesa; o Partido que, com consciência da sua responsabilidade, aceita participar num governo de uma vasta coligação, que realiza uma política com a qual, em numerosos aspectos, o Partido não está de acordo, mas aceita participar porque há objectivos comuns essenciais, porque assim pode influir mais favoravelmente nos acontecimentos e porque, se saísse da coligação, a situação rapidamente se deterioraria abrindo caminho fácil à reacção e ao fascismo. Estamos certos de que o povo português considera a participação dos comunistas no governo como um motivo da sua fundada esperança na vitória final e definitiva da democracia.
A influência, o prestígio, o apoio de massas do Partido mostram a sua grande força. Mas seria um gravíssimo erro se os êxitos, a força e a influência de massas do Partido nos subisse à cabeça. Na história do movimento revolucionário, houve partidos que pagaram caro a sobrestimação da sua própria força. A força e influência do Partido não devem levar a qualquer menosprezo pelo reforço da unidade das forças democráticas e pelo reforço da aliança do movimento popular com as Forças Armadas, a qualquer menosprezo pelo trabalho para ganhar as camadas médias e vacilantes, para unir todos os portugueses que desejam que a situação democrática provisória e incerta em que ainda vivemos se consolide, se tome finalmente, após eleições livres, um regime democrático estável e definitivamente libertado do receio de um regresso ao fascismo.
As forças da democracia e da paz estão em condições, se unidas, de assegurar o futuro democrático de Portugal.
A vitória é difícil, mas é nossa.
Viva a unidade das forças democráticas e das massas populares!
Viva a aliança do movimento popular com as Forças Armadas!
Viva o Partido Comunista Português!
Viva a liberdade!